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Advogados

Augusto Raymundo Bonfim de Paula

12 de dezembro de 2022

Advocacia militante

Tudo começou em 1968. Eu era mais um adolescente secundarista, estudava em escola pública, iniciei minha participação política nas passeatas estudantis e logo fui para o grêmio da escola.

Fazia segunda série do ginásio, tinha dois irmãos que à época eram envolvidos com a militância política, mas não tinha consciência, nem mesmo informações precisas, do que estava acontecendo naquele momento histórico, sobretudo as grandes lutas pela derrubada da ditadura militar e as transformações sociais que se buscavam para um Brasil democrático e independente.

Logo depois, já em 1970, fui para o Colégio Central da Bahia, onde estudaram, entre tantos baianos ilustres, Rui Barbosa, Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha e Caetano Veloso, palco de grandes manifestações sociais e um dos mais politizados colégios de segundo grau da Bahia. Alí, tinha o curso científico e o clássico. De lá saíram grandes lideranças do Movimento Estudantil.

No ano anterior, em ambiente de grande agitação política em defesa das liberdades públicas, o governo militar utilizou os famigerados decretos 288 e 477, base legal para perseguir, expulsar e cassar os estudantes que se envolviam em política. O Colégio Central bateu o recorde na perseguição e expulsão de estudantes.

No início de 1970, várias pessoas ligadas à corrente política Ação Popular foram presas aqui na Bahia. Entre tantas me lembro do hoje professor e deputado pelo PT, Emiliano José, que vinha de São Paulo, Benjamim Ferreira, dirigente sindical, e Zanete. Este último era um companheiro que chegava do Paraná, onde estava sendo procurado. Um dos meus irmãos, Arthur Geraldo Bomfim de Paula, participava desse mesmo grupo e passou a ser procurado pela repressão, tendo sido obrigado a ir para a clandestinidade como muitos opositores ao regime militar. Por conta dessas prisões, mesmo sem ser preso, Arthur foi condenado a dois anos de prisão com base na lei de segurança nacional.

Mais tarde, em 1973, Arthur acabou sendo preso em Recife-PE e novamente condenado, agora em um processo pela sua participação no Partido Comunista do Brasil, recebendo uma condenação de mais cinco anos de prisão.

Antes de sair da Bahia, Arthur, já conhecendo meu envolvimento com o movimento estudantil, apresentou-me a uma companheira chamada Doris que, por sua vez, colocou-me em contato com Emiliano José. Daí em diante, jamais me afastei dessas figuras e seus ideais, até ser advogado de presos políticos e dos Direitos Humanos, ainda na condição de estudante de Direito, até os dias atuais.

Em 1973, quando deveria fazer o vestibular, foi discutido entre vários companheiros e amigos a necessidade de se ter advogados militantes, já que os poucos advogados abnegados que defendiam os presos políticos, além de poucos, não poderiam, por várias limitações, executar algumas tarefas necessárias à própria sobrevivência dos presos, ou dos “meninos da segurança nacional”, como eram carinhosamente chamados pelos amigos.

Logo que entrei na universidade, recebi a incumbência de fazer contato do mundo aqui fora com os “meninos” presos na Penitenciária Lemos de Brito, na Galeria “F”. Depois, em 1974, como estagiário, comecei a viver minhas experiências como “advogado” de presos políticos.

Estagiando com grandes nomes da advocacia baiana, a exemplo do Dr. Jayme Guimarães, Dr. Inácio Gomes e Dra. Ronilda Noblat, passei também a visitar e fazer os contatos com outros presídios, como o de Recife (Itamaracá), Sergipe, Fortaleza, além dos de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Estes contatos eram facilitados por ser estagiário de Direito e, portanto, ter a carteira da Ordem me permitia entrar com certa facilidade nos presídios, podendo articular as defesas e as lutas que se desenvolviam junto aos movimentos pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Entre alguns fatos que merecem destaque, deste período, vale lembrar a luta pela preservação da vida e contra o isolamento imposto em Itamaracá a Carlos Alberto e Roline Cavalcante, condenados à prisão perpétua. Naquela época, foi articulada uma greve de fome nacional com o objetivo de quebrar o isolamento que havia sido imposto aos dois companheiros. Era uma luta política e jurídica. Os Tribunais Militares estavam todos ali, prontos para julgar e condenar os que pensassem diferente da política oficial. Aliás, as prisões estavam cheias de jovens idealistas e não existia perspectiva de mudança.

Acabei me diplomando em Direito e assumindo a defesa de vários companheiros aqui da Bahia, a exemplo de Paulo Fontes, Aluízio Valério, Theodomiro Romeiro dos Santos, além de acompanhar vários outros processos como assistente dos outros advogados. A carência de profissionais do Direito, simpáticos a estes ideais era enorme. Muito poucos ousavam e tinham coragem de defender os chamados presos políticos, os “terroristas”, os inimigos da ditadura militar. Quem entrava nessa luta também passava a ser perseguido, como os seus clientes. Certamente, essa situação de advogado defensor de preso político e as perseguições que daí advinham, era a razão do número insignificante de profissionais que atuavam nessa área.

Assumi, também, a defesa de alguns companheiros de Itamaracá, dentre eles a de João Bosco e Francisco Peixoto de Carvalho. Este estava condenado, à época, a 24 anos de prisão, dos quais chegou a cumprir mais de sete. Com a vigência da chamada Nova Lei de Segurança Nacional, requeremos a adequação da pena imposta pela 7ª Auditoria Militar de Pernambuco. O Juiz Auditor, José Bolívar Regis, era conhecido como carrasco dos presos políticos. Como se esperava, negou a adequação e a liberdade a que já fazia jus Francisco Peixoto, uma vez que pela nova lei já cumprira mais do que a pena imposta nos processos a que respondeu.

Lembro-me de uma vez, na Auditoria de Recife, quando o Juiz Bolivar me perguntou quanto eu recebia de honorários e afirmou que eu não cobrava porque era como os que estavam presos, que também era comunista e quem sabe terrorista. Esse fato me permitiu impetrar um Habeas Corpus em favor de Francisco Peixoto junto ao STM – Superior Tribunal Militar, tendo como relator o Ministro Júlio de Sá Bierrenbach.

O Habeas Corpus impetrado naquela época foi um dos primeiros a serem concedidos, já que o famoso e constitucional remédio jurídico não era respeitado pelos tribunais militares, quando requerido em favor dos presos políticos. Durante vários anos os militares nem conheciam do pedido de Habeas Corpus. Simplesmente rasgavam a Constituição e jogavam no lixo os direitos mais elementares dos opositores da ditadura militar. A liberdade de Francisco Peixoto, por meio de um Habeas Corpus, concedido pelo STM, causou grande repercussão na mídia.

Outro fato de que participei como advogado e que me marcou com grande alegria foi o de ter possibilitado a saída de Paulo Pontes e Aluízio Valério da Penitenciária Lemos de Brito, para se submeterem ao vestibular. Eles passaram nas provas e os acompanhei, junto a uma escolta, por mais de um mês, nas idas e vindas do presídio à universidade. Paulo Pontes fez Economia e Valério, Ciências Sociais. Hoje, Valério é advogado no foro da Bahia. Nos dias atuais, tudo isto parece nada. Naqueles tempos era tudo, era praticamente impossível uma conquista tão pequena.

Talvez o mais importante caso jurídico tenha sido a defesa de Theo, Theodomiro Romeiro dos Santos, ele que foi ainda muito jovem condenado à pena de morte.

Theo foi o primeiro brasileiro a ser sentenciado à morte por um tribunal militar e que, após tantos recursos, teve a pena comutada para prisão perpétua, depois para 30 anos e, finalmente, depois de somadas as outras duas que lhe foram impostas pelo Conselho de Sentença Aeronáutica, totalizou quase 17 anos de prisão, dos quais cumpriu mais de 9 anos, na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.

Mesmo com a Nova Lei de Segurança Nacional, que adequara as penas de Theo, com a Anistia, seu pedido de liberdade condicional foi negado pela Justiça Militar. Resolveu-se que ele “buscaria a liberdade” de qualquer forma. Não poderia e não deveria ser o último e o único preso político no Brasil, um refém nas mãos do governo.

Theodomiro acabou fugindo da prisão e se exilando na França, até quando, finalmente, foi decretada a prescrição das suas penas pelo Juiz Auditor da Bahia. Só após esse fato, pôde voltar para o Brasil, em 1986.

Da defesa de Theo, participaram outros advogados, entre eles Inácio Gomes e Ronilda Noblat.

Mas tudo tem seu lado bom, lúdico, pitoresco, apesar das dificuldades de toda ordem. Alí também existiam esses momentos. Nos dias de visita era uma festa ou quase isso. Principalmente aos sábados. As visitas aos sábados eram sempre recheadas de alegria e brincadeiras. Alguns de nós esperávamos inclusive o almoço. Almoço feito pelos “meninos” e sempre constando uma novidade culinária regional, já que a maioria era de outros Estados, aliás, coisa muito normal, levando-se em consideração estarem todos vivendo na prisão, na clandestinidade, longe de suas origens, por conta da perseguição política da ditadura militar.

Portanto, não bastava ser jurista ou advogado. Precisava ser, era indispensável ser mais do que isso. Era imperioso ser solidário, companheiro, amigo. Todos que militavam na defesa dos presos políticos acabavam se envolvendo emocional e politicamente com eles, participavam de todas as suas lutas, não apenas pela liberdade, sobretudo pela própria vida. Era grande a resistência de todos nós. Presos, famílias, advogados, amigos e companheiros que sonhavam com o fim da ditadura militar, implantação da democracia e a grande transformação social, a conquista do poder pelos trabalhadores, um sonho, uma utopia que ainda estamos por conquistar.

Augusto Raymundo Bonfum de Paula é Advogado Criminalista na Bahia.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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