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Advogados

Arnaldo Malheiros Filho

7 de dezembro de 2022

De uma audiência clandestina ao STM

Meus primeiros passos como advogado foram dados sob orientação de José Carlos Dias, com quem aprendi a profissão. Fui contratado porque a Auditoria estava absorvendo-o demais e ele precisava de um recém-formado para ajudar na Justiça comum. Justiça Militar não era comigo, embora eu acompanhasse à distância.

Assisti a momentos dramáticos na casinha da Brigadeiro Luís Antônio, sem contudo estar atuando como advogado. Lembro-me do José Carlos tão emocionado na defesa de um cliente a quem se afeiçoara, que o procurador temeu que ele enfartasse.

Em outro julgamento, um dos réus, que era advogado, pretendia fazer a autodefesa, direito que lhe era assegurado por três leis (CPPM, LSN e Estatuto da OAB). O Juiz Auditor era um homem desprezível, fez os mais sujos serviços que um magistrado poderia prestar à ditadura e, ao sentir os ventos da abertura, começou a posar de liberal. Mas a sessão de que falo ocorreu antes disso. Ele indeferiu o pedido e, ante a tentativa do acusado de protestar, deu um sonoro tapa na mesa e gritou um “cale a boca!”, passando a palavra ao defensor constituído Mário Simas.

Havia agentes do DOI-CODI espalhados pela sala. Apagaram a luz. Sob lampiões, Mário Simas ditou (a velha máquina de escrever mecânica prescindia de eletricidade) sua renúncia ao mandato, por ser essa a vontade do cliente. Foram momentos tensos, difíceis.

A primeira procuração que recebi de um preso político foi outorgada por Rodolfo Osvaldo Konder, a quem, já então, eu muito admirava. Ele testemunhara, pela fímbria do capuz, a morte de Valdimir Herzog na cadeira do dragão. O clima político se adensava e ele resolveu fugir do País. Antes, porém, houve uma audiência clandestina para a tomada de seu depoimento, na qual atuei como escrivão, dedilhando a IBM elétrica.

Precisávamos de testemunhas de confiança para guardar o segredo e de coragem suficiente para confirmá-lo, quando fosse a hora da revelação. José Carlos convidou Goffredo Silva Telles, Hélio Bicudo e Prudente de Moraes, neto, além de um representante da Igreja. Presentes estavam também Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach e José Roberto Leal de Carvalho.

Foi terrível ouvir e registrar a verdadeira história de um bárbaro homicídio cometido durante a tortura e da falsificação de um suicídio. Rodolfo, obviamente, estava emocionado, como ficamos todos nós. Era uma prova concreta, inequívoca da tortura, que todos nós sabíamos muito bem que existia, mas que a ditadura negava cinicamente.

Isso, aliás, me lembra um fato anterior. José Carlos Dias recebera ordem judicial para se entrevistar com um cliente no DOI. Lá, apresentaram-lhe o preso ensanguentado e dilacerado, sem condições mentais de conversar. Diante disso, o advogado requereu que o cliente fosse apresentado a ele no recinto da Auditoria, pois não havia condições de com ele se entrevistar no mesmo local em que ele estava sendo “barbaramente torturado”. O Auditor, aquele, reuniu o Conselho de Justiça em sessão secreta e deliberaram mandar riscar essas palavras da petição, pois no Brasil não existe tortura…

Ter sido escrivão na audiência clandestina fez com que eu me interessasse pela Justiça Militar mas, por uma questão de divisão de tarefas, nunca atuei nas Auditorias, mas somente no Superior Tribunal Militar.

Muita gente se surpreende quando digo que guardo boa recordação daquela Corte. Os Ministros militares eram dez oficiais da mais alta patente nas três Forças e não precisavam mostrar nada a ninguém, tinham independência. Seu cargo era o mais nobre da carreira (eles tinham competência para julgar até mesmo os Ministros de Estado militares), com muitas honrarias, mas sem tropa. Por isso, iam para lá os “incômodos”, de tendência mais liberal. Além disso, como juízes não profissionais, davam muita atenção à prova e à defesa. Lá também houve barbaridades, mas muito menos que nas Auditorias.

Vi Sobral Pinto contar da tribuna a história do dia em que o aeroporto de Brasília estava entupido de gente, com todos os voos atrasados. Ele soube que a razão era a aproximação do avião que trazia o Vice- Presidente da República, o que exigia o fechamento da pista, para que ficasse exclusiva para ele. O Vice em questão era o General Adalberto Pereira dos Santos, ex-Ministro do STM, com quem Sobral se dava bem. Escreveu-lhe em protesto e recebeu gentil resposta, em que o General disse que jamais soubera que fechavam a pista para seu avião pousar e que ia determinar que isso não mais ocorresse. Aí o grande Sobral abriu os braços e disse “Se o Vice-Presidente da República não sabe que fecham o aeroporto para ele pousar, como Vossas Excelências haveriam de saber que estão torturando lá longe, nos porões? Mas estão.” Tenho duas lembranças agradáveis de lá.

A lei determinava que o julgamento da apelação de réu solto fosse feito em sessão secreta para que, se fosse o caso, se cumprisse o mandado de prisão antes da comunicação do resultado. Após as sustentações orais, a plateia, incluindo advogados, era convidada a se retirar e as portas trancadas. Certo dia, quando esse momento chegou, o Procurador- Geral continuava aboletado em seu lugar. Fui à tribuna e pedi para permanecer no recinto ou, alternativamente, que o Procurador se retirasse. Quem estava no cargo não era o titular, mas um substituto que foi muito inábil. Resultado: puseramno para fora, pela primeira vez. Não era grande coisa, mas os advogados comemoramos como se fosse uma vitória importantíssima…

Em outra ocasião fui sustentar um pedido de prescrição, com base numa tese que havíamos criado no escritório. Não me lembro qual era, mas era coisa complicada, uma verdadeira ginástica. Excedi meus 20 minutos na tribuna (nos tribunais civis o prazo é de 15) e o Presidente mandou que eu prosseguisse pelo tempo que achasse necessário. Terminei e, depois de muita discussão, acolheram o pedido e a sessão foi encerrada. Na saída, um dos Ministros civis me procurou, elogiou meu trabalho e disse: “Sou professor de Direito Penal aqui em Brasília e acho prescrição um assunto difícil de explicar para estudantes. Mas para militares…” E retirou-se.

Não há mal que sempre dure e o regime de exceção foi esmaecendo até acabar. Mas a memória dos tempos negros não pode ser apagada.

Arnaldo Malheiros Filho é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal na FGV de São Paulo e Membro Fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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