Antonio Mercado Neto
Um civilista extraviado
Por iniciativa do então Vereador José Mentor Guilherme de Mello Netto, em 1998, e depois, já como Deputado Federal, em 2003, na Câmara Municipal de São Paulo e, mais tarde, na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Legislativo uniu-se à Ordem dos Advogados do Brasil e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas para homenagear “ilustres advogados criminalistas por sua destemida e corajosa atuação perante a Justiça Militar, nas décadas de 60 e 70.”
Ao ver-me incluído entre os “ilustres advogados criminalistas”, não pude conter um misto de emoção e surpresa. “Advogado”, sim, orgulho-me de ter sido e de continuar pertencendo à Ordem. Já “ilustre”, só posso sê-lo porque meu nome figura ao lado de colegas que tanto se destacaram na atividade profissional e na vida pública. ”Criminalista”, porém, jamais pensei ter sido – quando muito, um jovem civilista extraviado no inóspito território da Auditoria Militar.
Lá cheguei quase por acaso, quando meus alunos de Direito Civil da PUC começaram a ser presos pelos órgãos de repressão da ditadura militar. Só no congresso da UNE, em Ibiúna, centenas de estudantes foram detidos, sendo alguns da Faculdade Paulista de Direito (José Dirceu, Travassos e o próprio José Mentor, entre outros). Aos 23 anos, eu era o professor que lhes estava mais próximo: compartilhávamos a mesma vida acadêmica, a mesma juventude, a mesma repulsa ao arbítrio e a mesma esperança de fazer do Brasil um país justo. Era natural, portanto, que os alunos me procurassem como advogado, embora minha incipiente experiência profissional se restringisse ao cível. Depois, outros inquéritos e prisões se sucederam, atingindo diversos amigos do teatro amador e profissional, onde eu também dava meus primeiros passos. E por conta dessa escalada de violências, o escritório, antes restrito às causas cíveis, acabou por voltar-se para a Justiça Militar, sem que tivéssemos qualquer experiência prévia na área criminal. Se algo pudemos fazer na defesa dos direitos humanos e das liberdades públicas, o mérito deve ser creditado primordialmente à competência e dedicação dos meus dois colegas e sócios, os Drs. Maria Regina Pasquale e Belisário dos Santos Júnior.
O que nos faltava em erudição e experiência era em parte compensado por muito estudo e pesquisa, pela presença constante junto aos clientes e suas famílias, e pela autenticidade de nossa indignação em face da ruptura da ordem jurídica e da sujeição das cortes militares às imposições castrenses. Mas não estávamos sós: tínhamos ao nosso lado as figuras paradigmáticas de Sobral Pinto, Heleno Fragoso e outros criminalistas de escol, que nos ensinaram a resistir com altivez à prepotência e ao arbítrio, sem jamais sucumbir à sensação de impotência.
Destruindo a visão romântica que trazíamos dos bancos acadêmicos, a prática da advocacia nos tribunais políticos revelou-se como uma sucessão de noites mal dormidas, sobressaltos constantes, amargas derrotas, árduas e raras vitórias, num tempo em que o próprio exercício da advocacia sofria constrangimentos e intimidações: escritórios invadidos, arquivos violados, advogados detidos sem motivo nem mandado. Para nós, criminalistas aprendizes, era inconcebível a suspensão das garantias constitucionais e de outros direitos essenciais à defesa de nossos constituintes.
Repugnava à nossa consciência jurídica manusear diariamente um simulacro de lei que, em nome de uma suposta segurança nacional, convalidava o arbítrio, amordaçava as vozes divergentes e sujeitava a liberdade aos humores e interesses do poder. Mais do que nunca, era fundamental ter em mente a lição sempre atual de Couture, em seus Mandamentos do Advogado: “4° Mandamento – Luta: Teu dever é lutar pelo direito; mas se acaso um dia encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça.”
Na Auditoria da 2ª RM éramos poucos, muito poucos para atender a tantos, mas obstinados na luta pela justiça. As adversidades com que nos defrontávamos ensinaram-nos a ser solidários. Sabíamos que a notícia urgente sobre alguém que desaparecera, ou fora levado para sessões de tortura, ou reconhecido nos subterrâneos da repressão, podia ser um fato de vida ou morte para qualquer de nossos constituintes. Devíamos atender a alguns, porém advogar pensando em todos. Através dessa fraternidade profissional, conseguíamos nos multiplicar nas visitas aos presídios, nos interrogatórios e demais atos processuais. Quanto mais dificultava a atuação do advogado, mais a ditadura nos unia e irmanava.
De nossos constituintes recebemos inesquecíveis lições de integridade, altruísmo e dignidade humana. Por mais diversas que fossem suas opções políticas, sobre as quais não nos cabia opinar, era geralmente exemplar a coragem com que defendiam suas convicções. Muitas vezes, em respeito às suas exigências, tivemos que aprender a abrir mão de uma linha de defesa que nos parecia mais adequada, para dar voz às denúncias das torturas sofridas e aos ideais que os haviam levado ao cárcere. Em contrapartida, creio que nossa atuação tenha concorrido para estimulá-los a uma reflexão profunda sobre a importância da ordem jurídica na construção da democracia. A contribuição de muitos deles à vida pública, na fase de restauração do Estado de Direito e até hoje é uma prova cabal desse aprendizado mútuo.
Aprendemos muito, aprendemos todos, advogados e clientes, e até mesmo este ex-civilista, que muito aprendeu com a tribuna criminal, antes de extraviarse novamente por outros palcos, em busca de novos cenários. Aprendemos também, como o Henrique V de Shakespeare, que a solidariedade e a fraternidade são capazes de derrotar exércitos aparentemente imbatíveis e construir uma nova cidadania. Acima de tudo, transcorridas várias décadas da promulgação do AI-5, aprendemos que o triunfo da Lei sobre o arbítrio não é uma esperança vã.
Antonio Mercado Neto é Advogado, Professor Universitário e Encenador Teatral
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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