Antônio Expedito Carvalho Perera
Advogado militante; militante advogado
Maria das Graças Perera de Mello (com a participação de Catarina C. Carvalho Perera e Francisco Tiago Carvalho Perera).*
Naquele dia – 3 de março de 1969, segundafeira -, nosso irmão Antônio Expedito, advogado militante em Porto Alegre desde 1952 e que advogava em São Paulo há 5 anos, foi preso em seu escritório, na Rua Riachuelo, Capital.
Nosso irmão Tiago, que trabalhava com ele fazia pouco tempo, apressadamente voltou para casa (morávamos, há poucos meses, na Av. Consolação, em São Paulo, e não tínhamos telefone) e, muito apreensivo, contou-me o que havia acontecido: por volta das nove horas a Operação Bandeirantes, tendo à frente o Capitão Pivato, entrou no escritório utilizando truculência, força e violência desnecessárias, já que não houve qualquer sinal de resistência, e realizou a prisão de Antônio. Aliás, naqueles tempos, as prisões eram muito violentas, sem explicações, desmotivadas, arbitrárias. Depois, sabíamos, muita tortura e, não raro, a morte.
Eu precisava contar aos meus pais, porque Tiago deveria voltar ao escritório então tomado por policiais civis e militares. E foi o que ele fez.
Neste meio tempo, minha irmã Catarina foi ao escritório, sem nada saber, para se encontrar com Antônio, sem que tivesse marcado. Catarina e Antônio eram muito ligados, cresceram juntos. Tinham uma enorme cumplicidade fraterna. Ao sair do elevador encontrou Marisa, uma funcionária do escritório de advocacia, que disse para ela acompanhá-la ao andar abaixo, rapidamente. Diante da seriedade do pedido, Catarina desceu com Marisa que a deixou a par do acontecido. Minha irmã saiu apressada com destino à casa de nossos pais.
Em casa, estava eu criando coragem para contar aos meus pais. Neste momento, já tinha ficado sabendo que meu outro irmão, o Zé, tinha sido preso na noite anterior, juntamente com a então esposa de Antônio, na residência dele, onde estava hospedado. E que, com toda certeza, Tiago também seria, tão logo chegasse ao escritório, como acabou acontecendo.
Antônio tinha um bom escritório de advocacia, atuante em vários ramos do Direito e no Criminal, advogava junto com Anina Alcântara Carvalho, em especial na Auditoria Militar de São Paulo, defendendo artistas, estudantes, operários, militantes de esquerda. Tinham obtido êxito em mais de 120 habeas corpus antes do AI-5.
Antônio era muito reservado. De suas atividades profissionais falava pouco e das políticas, nada dizia. E nós, que o conhecíamos tão bem, não perguntávamos nada.
Dias antes, uma reunião aconteceu em nossa casa, em um dos quartos. Antônio reuniu-se com alguns amigos, para tratar de assunto pessoal. Meus pais e eu não participamos, ficamos na sala. Ao final da reunião, restou combinado que caso nós (meus pais e eu) soubéssemos de algum problema, alguma coisa anormal, deveríamos estender uma colcha vermelha, que minha mãe tinha, na janela. Este era um sinal de cuidado e atenção para todos.
No dia da prisão de Antônio, logo após eu contar aos meus pais o acontecido, minha mãe, sem pestanejar, correu, pegou a colcha vermelha e pendurou na janela, conforme o combinado.
Em seguida, minha irmã Catarina chegou. Estávamos em casa sem saber o que estava acontecendo com Antônio, Zé e Tiago presos. E a então cunhada. Aliás, em virtude do comportamento dela, anterior e durante a prisão, foi aí que desfez-se, definitivamente, o casamento deles.
Dali a algum tempo, bateram à porta. Atemorizada, fui abrir: era Cesar, um dos amigos de Antônio que havia participado daquela reunião em casa. Ele precisava, com urgência e rapidez, saber o que estava ocorrendo. Chamei minha mãe que lhe narrou o acontecido. Cesar agradeceu e saiu, após ter ouvido de minha mãe, muito religiosa que era, que ia rezar por eles.
Depois viemos a saber que Cesar era o Capitão Carlos Lamarca: pessoa simples, atenciosa e solidária. Foi a única vez que vimos Carlos Lamarca pessoalmente.
Nosso irmão Antônio, advogado, foi brutalmente torturado, mas ficou firme. Fizeramno incomunicável por mais de quatro longos meses no DOPS, mas não fraquejou. Depois foi para o Presídio Tiradentes, amealhando quase dois anos de prisão, tempo todo em que foi apenas interrogado no processo judicial. E resistiu e incentivou que outros resistissem. E do Tiradentes foi banido do território nacional em 4 de janeiro de 1971.
Foi exatamente nesta época que conhecemos pessoas as quais jamais esqueceremos. Vivenciamos a esperança e a solidariedade. Vivemos um grande aprendizado. Conhecemos vários colegas de Antônio, advogados e advogadas valorosos.
Por todas estas pessoas e por esta luta, nos anos de ditadura, objetivando um mundo mais justo e igual, é que temos hoje a liberdade de dizer o que vivemos.
Antônio Expedito Carvalho Perera foi filho, irmão e pai dedicado. Advogado e militante, aqui e fora, leal e corajoso. Para nós, resta, desde 1971, uma imensa saudade de nosso irmão Antônio.
*Maria das Graças Perera de Mello é Advogada, ex-presidente da OAB Mulher de São Paulo, 1a Secretária da ASAS – Associação das Advogadas, Estagiárias e Acadêmicas de Direito do Estado de São Paulo, Coordenadora Geral do Centro de Estudos e Atividades Sociais.
Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014
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