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Advogados

Antonio Carlos dos Reis

13 de dezembro de 2022

O advogado dos advogados

No ano de 2002, a “Revista do Advogado”, editada pela Associação dos Advogados de São Paulo, publicou uma edição especial dedicada ao saudoso colega Dr. Raimundo Pascoal Barbosa, falecido em agosto daquele mesmo ano, dando-lhe o merecido título de “Advogado dos Advogados”.

Ninguém melhor do que o saudoso colega para receber a honrosa homenagem, uma vez que, além de ser um dos melhores profissionais do ramo do Direito Penal de sua época, elaborou defesas históricas, recursos, arrazoados, habeas corpus, em favor de inúmeros colegas, sendo certo que a grande maioria deles teve suas prerrogativas profissionais desrespeitadas e violadas por agentes do Estado, tais como servidores, escrivães, Delegados, Juízes, Promotores e Desembargadores.

Quando isso acontecia, lá estava o Dr. Pascoal (como nós o chamávamos afetivamente), preparando suas substanciosas peças de defesa de colegas, atendendo a pedido da nossa OAB/SP, da qual sempre fez parte, seja como conselheiro e até mesmo como presidente da diretoria.

Somos cria do Dr. Pascoal Barbosa, o que proclamamos com muito orgulho, e com ele trabalhamos por muitos anos. Além das grandes qualidades profissionais acima mencionadas, ele era um ser humano de imensas virtudes, com um coração do tamanho da nossa cidade de São Paulo. E tanto isto é verdadeiro que após o movimento militar de 1964, que culminou com a deposição do Presidente João Goulart, iniciada a caçada às bruxas, o Dr. Pascoal foi defensor de muitos presos políticos, tendo sido procurado, em desespero, por pais, mães, filhos, maridos, esposas, tios, sobrinhos, namorados, todos seriamente preocupados, e com razão, por motivo das arbitrárias e ilegais prisões de seus entes queridos.

Portanto, justifica-se plenamente o título que lhe foi dado pela revista da nossa classe.

O Dr. Pascoal era um nome regional, muito conhecido no Estado de São Paulo, mas houve um outro profissional, de grande nomeada e também de grandes virtudes profissionais e humanas, conhecido nacionalmente, e que foi o Dr. Sobral Pinto, cujo nome completo era Heráclito Fontoura Sobral Pinto.

Ousamos, nesta modesta crônica, prestar-lhe uma merecida homenagem, estendendo-lhe igualmente o título de “Advogado dos Advogados”.

No exercício da profissão, recém-formado pela PUC, notadamente como colega de escritório do Dr. Pascoal e sob o comando profissional deste, na defesa de vários presos políticos, tivemos a grata companhia do Dr. Sobral Pinto, o qual se deslocava do Rio de Janeiro, para participar das audiências de instrução do processo de seu mais famoso cliente, Luiz Carlos Prestes, do não menos famoso processo das cadernetas de Prestes.

Dois episódios marcantes da vida profissional do Dr. Sobral Pinto merecem destaque especial e dos quais fomos contemporâneos.

O primeiro deles, foi sua participação como defensor do líder comunista. Nos idos de 1936/1937, já em plena ditadura do Estado Novo, Prestes sofria nas masmorras de Getúlio Vargas, sob o comando do carrasco Filinto Muller, chefe do DIP, a Polícia Política do ditador. Como é sabido, todo ditador, seja civil ou militar, tem os seus gorilas, os seus homens de confiança, cuja missão principal é arrancar confissões dos presos políticos sob tortura, suplícios e debaixo de pau. Assim era o gorila de Getúlio, o detestado Filinto Muller.

Neste nebuloso ambiente, a pedido da OAB, depois de muita insistência, o Dr. Sobral Pinto foi recebido por Prestes, avisando ao prisioneiro que precisava de uma procuração do cliente, para defendê-lo no Inquérito Policial Militar que havia sido instaurado contra ele perante o Tribunal de Segurança Nacional.

Depois de observar atentamente o Dr. Sobral Pinto, o prisioneiro lhe disse que sabia ser o advogado um carola, um papa-hóstia, puxa-saco dos padres e que seria o menos indicado para defendê-lo, por se tratar de um homem ateu, contrário a tudo aquilo que a religião do colega pregava e que, se pudesse, a destruiria.

Serenamente, como bom cristão, o Dr. Sobral Pinto se conteve e disse a Prestes que o fato da divergência de ideias e de religião que o profissional professava, isto não impedia que ele exercesse sua profissão plenamente e com toda a dignidade, pois, não havia nenhuma incompatibilidade entre uma coisa e outra.

Foram necessárias várias idas do profissional à prisão, sempre com a recusa de Prestes, até que, em uma das vezes, deu-se o milagre e Prestes assinou a procuração para o Dr. Sobral Pinto.

Daí em diante a história é conhecida e o Dr. Sobral Pinto passou a ser o defensor de Prestes, sem lhe cobrar um centavo de verba honorária.

De passagem, deve-se dizer que foi em um dos processos de Prestes e Berger, dos vários a que responderam, que o Dr. Sobral Pinto invocou a Lei de Proteção dos Animais, colocando em uma petição que “a situação em que se encontra é precisamente a do art. 14 da Lei de Proteção aos Animais. Este artigo diz que nenhum animal pode ser posto numa situação que não esteja de acordo com sua natureza. Um cavalo não pode ficar dentro de uma baia a vida inteira. Tem que sair para galopar, isso é da sua natureza. O Homem também não pode ficar numa situação dessas, contrária a tudo que há em sua natureza e à sua psicologia. Por essa razão, peço a aplicação da Lei de Proteção aos Animais”. Ressaltese que Prestes ficou preso incomunicável e sem qualquer comunicação com o exterior durante seis meses, vigiado dia e noite por um guarda, em uma cela localizada no porão da masmorra.

Ainda de passagem, foi com a autorização de Getúlio Vargas, e sob a pressão de Filinto Muller, que Olga Benário, a judia esposa de Prestes, foi transferida para a Alemanha nazista, onde morreu sob maus tratos nos campos de concentração do nazismo.

Outro episódio marcante da vida profissional do Dr. Sobral Pinto foi o ocorrido em dezembro de 1968, em que ele foi convidado para ser paraninfo de uma turma da Faculdade de Direito de Goiânia. Naquela mesma noite, a Câmara dos Deputados havia negado autorização para prender o deputado Marcio Moreira Alves e quando foi dada a palavra ao Dr. Sobral Pinto, com aquele desassombro que o caracterizava, disse cobras e lagartos sobre o Ato Institucional nº 5, que havia sido editado na véspera. Foi a maior ovação que o velho profissional havia recebido em vida.

Por volta da meia noite, bateram na porta do hotel onde o Dr. Sobral Pinto estava hospedado. Fazia um forte calor e o colega estava à vontade, de chinelos, de manga de camisa, sem meias e com uma calça daquelas de andar dentro de casa sem se preocupar com nada.

Ao abrir a porta, o Dr. Sobral Pinto foi surpreendido por um homem fardado, acompanhado de cinco outros, o qual disse: “sou o Major Fulano de Tal” e abriu o paletó. “E daí?”, respondeu o Dr. Sobral Pinto. O Major afirmou que tinha recebido ordens do Presidente da República e estava transmitindo essas ordens a ele. “Me acompanhe”. Resposta do Dr. Sobral Pinto: “meu amigo, o senhor se diz Major. Se o Presidente da República lhe der ordens é natural que o senhor obedeça. O senhor é Major e está sujeito a isso. Eu não, sou paisano. Só devo acompanhá-lo preso, se o senhor tiver em mãos um mandado de prisão expedido por autoridade judiciária ou em flagrante delito. O senhor tem este documento, porque não cometi nenhum delito para me submeter a um flagrante?” Resposta do Major: “não seja atrevido”, dizendo para os acompanhantes: “Prendam-no”. Os cinco acompanhantes entraram e agarraram o Dr. Sobral Pinto, que não se intimidou, dizendo que não ia e que eles tinham de arrastá-lo. Sentou de cócoras no piso, foi arrastado de chinelos, manga de camisa e sem meias e o espetáculo foi digno de nota, com cinco homens arrastando um idoso, de cócoras, esbravejando e protestando contra a arbitrariedade daqueles militares, atravessando todo o hall do hotel.

Levado para o Regimento Aquartelado de Goiânia, o colega foi diretamente ao gabinete do Comandante, que lhe fez a seguinte pergunta: “O senhor é patriota?” Resposta: “sou mais do que o senhor, que vive à custa do tesouro nacional para fazer essa violência. Isso é que é falta de patriotismo.” O Comandante continuou: “o senhor vive soltando subversivos e comunistas, isto é falta de patriotismo”. Resposta: “O senhor chegou a esta idade e a este posto sem saber que advogado não solta ninguém. O advogado postula, requer, quem solta é o Juiz. Aprenda essa lição.”

Depois desses fatos, o Comandante, irritado, determinou aos subordinados que “tirem esse homem daqui imediatamente.” Ato contínuo, o Dr. Sobral Pinto foi colocado em um quarto, inteiramente despido, sem nenhuma cadeira ou mesa, com duas sentinelas na entrada de baioneta calada.

Outro fato que deve ser realçado. No dia do julgamento do processo das cadernetas de Prestes, na Auditoria Militar do Exército, situada na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, o Dr. Sobral Pinto, mais uma vez, deslocou-se do Rio de Janeiro, para fazer a defesa do líder comunista e a sustentação oral de suas razões.

Além do Dr. Sobral Pinto, estavam presentes, salvo engano, mais cinco defensores, entre os quais, este modesto cronista, Dr. Pascoal Barbosa, Dr. Juarez Alencar, Dr. Dante Delmanto, Dr. Volnei e Dr. Bernardes.

De comum acordo, todos os defensores cederam ao Dr. Sobral Pinto o tempo de que dispunham para a sustentação oral das razões do processo de seus clientes, uma hora para cada um, e assim o colega dispôs de 6 horas para sua defesa oral, comprometendo-se a representar os demais naquele momento e naquela oportunidade.

Pena que na época a ditadura não permitia gravação ou qualquer reprodução das razões dos advogados, prevalecendo a censura absoluta, mas é certo que o Dr. Sobral Pinto produziu durante as seis horas que ficou na tribuna, das 13 às 19, com um intervalo de uma hora, uma bela peça de direito, de humanismo e de grande experiência adquirida na escola da vida. E todos, advogados, o Promotor, o pequeno auditório e o Conselho de Justiça Militar, composto por quatro oficiais do Exército e um Juiz togado, o Dr. Tinoco Barreto, ficaram atentos e não arredaram pé do local, inebriados pela bela defesa produzida pelo Dr. Sobral Pinto, que além de dar uma aula de Direito, sobretudo proporcionou a todos nós uma verdadeira lição de história do Brasil, contando fatos dos quais ele foi partícipe, como a Revolta dos Tenentes, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, a Revolução Paulista, a ditadura do Estado Novo, a redemocratização do país, até chegar ao negro período da ditadura militar de 1964.

Esperamos que as novas gerações de colegas tomem conhecimento desses fatos, saibam e reverenciem estes dois gigantes, que lutaram com todas as forças e deram o melhor de si contra a prepotência, a arbitrariedade, a truculência e a violação dos mais comezinhos princípios de direito humano. Orgulhemo-nos desses dois gigantes que foram os Drs. Sobral Pinto e Pascoal Barbosa.

Antonio Carlos dos Reis é Advogado Criminalista, integrou o quadro de advogados do escritório do Dr. Raimundo Pascoal Barbosa, tendo atuado na defesa de inumeros presos políticos. Atualmente, faz parte do escritório de advocacia Mendonça e Roller Mendonça, Advogados Associados

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014



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