Antonio Carlos Barandier
Gritos de gol e de dor
Impressionante o caso da jovem educadora e também estudante de Direito, presa em 1969, quando panfletava junto com quatro companheiros num centro comercial do bairro de Madureira. Os panfletos conclamavam à luta contra a ditadura e denunciavam prisões de personalidades como Juscelino Kubitschek. Os capturados, apontados como responsáveis pela ação de extrema audácia, foram conduzidos para o DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) e autuados em flagrante delito.
A moça é recolhida ao Depósito São Judas Tadeu, estabelecimento feminino situado no pátio do prédio-sede do DOPS. O local é modesto, mas impecavelmente limpo, administrado de forma paternalista. Ali estão mulheres processadas e algumas condenadas pela Justiça comum, corretamente uniformizadas, a maioria proveniente das mais humildes camadas sociais. São o orgulho do diretor, detetive aposentado, que as trata de “minhas filhas”.
Com o tempo, as vagas naquele estabelecimento tornam-se disputadíssimas, mobilizando pistolões de mulheres de melhor condição social envolvidas em processos criminais. Qualquer visitante é bem recebido. O diretor lamenta a falta de espaço e orgulha-se de mostrar as dependências dos São Judas, apresentando, uma a uma, as suas “filhas”.
Ultimamente um problema lhe desagrada: o São Judas passou a receber também presas políticas, para solucionar deficiências do DOPS. As “subversivas” falam de forma diferente, não usam uniformes e não estão sujeitas à faxina. Estimulam ciúme e inveja das “comuns”.
A professora-estudante de Direito deveria estar no São Judas, mas lá não está. Suas irmãs me contam que policiais estiveram em suas casas em busca de informações sobre o seu paradeiro. Ela fora liberada de forma irregular.
Trata-se de mais uma das incríveis histórias da loucura brasileira. Prisões que não deveriam ter ocorrido ou que não devem ser assumidas são debitadas ao DOPS. O Secretário de Segurança, irritado com a situação, determinou a soltura de todos que estivessem presos sem ordem judicial. Certamente, os assessores do general esqueceram da hipótese de flagrante. Daí a indevida liberação da professora.
O processo dos panfletos corre na Primeira Auditoria da Marinha, que ordena a apresentação dos acusados para interrogatório. Como explicar a soltura? Enquanto os policiais tentam recapturá-la, recebo convite para comparecer ao gabinete do delegado do DOPS, que deseja minha colaboração. Apresentandose espontaneamente, a moça livraria sua barra e a de todos. Afirmo desconhecer onde encontrá-la e acrescento: não cabe ao advogado conduzir pessoas ao cárcere. A prisão preventiva da “foragida” é decretada e o processo segue à revelia.
A jovem então me procura. Não deseja se entregar. Esclareço as vantagens, sob o ponto de vista processual, da sua apresentação em juízo, que pode até ensejar a revogação da prisão, embora o Conselho, extremamente severo, costume negar os pedidos dos advogados. Os Conselhos Militares, como qualquer tribunal, compõem-se de juízes menos e mais liberais. O do processo dos panfletos, mesmo considerando a temperatura do AI-5, é dos mais draconianos.
Ainda dentro da loucura brasileira, a professora precisa depor em unidade do Exército. Recebo a garantia de que ela não será presa quando lá comparecer. O próprio coronel encarregado das sindicâncias lhe dará cobertura no caso de ação do DOPS ou de outro órgão de segurança. Não é bom estimular diligências do Exército. A foragida se apresenta no quartel indicado e se retira após o depoimento, tudo correndo dentro do pacto assumido. O mais incrível é que tudo indica cuidar-se de sindicância despida de caráter oficial, que investiga autoridade administrativa do Ministério da Fazenda, e a professora em nada poderia contribuir. E, surpreendentemente, o procurador da Auditoria da Marinha que expediu o mandado de prisão também assessora a informal sindicância.
Em meio a tudo isso, somos contemplados com o Decreto 510, que altera a lei de segurança. Objetiva suprir-lhe as lacunas e omissões, apertando o cerco, especialmente no campo processual. O prazo para sustentação oral defensiva é reduzido para meia hora, quando há mais de um acusado no julgamento. As testemunhas indicadas pelo réu devem ser apresentadas pelo interessado, sem intimação. Se não comparecerem na data designada, estará implícita a desistência por parte da defesa! Como obrigar funcionários públicos, policiais ou agentes de segurança, sem falar nos acovardados ou desinteressados, a prestar declarações?
Advogados revoltados com a torpeza da nova legislação se reúnem na cantina do STM, onde o cardápio nunca varia. Os mais exaltados se posicionam pelo abandono das causas em andamento e pela recusa ao patrocínio de novas defesas. “Impossível funcionar dessa maneira. Estaremos compactuando com a ditadura!”, exclamam. A maioria sugere a redação de manifesto à ONU e a outros órgãos internacionais denunciando a inviabilidade do cumprimento do nosso dever.
O advogado mais velho, o decano de cabelos brancos, Augusto Sussekind de Moraes Rego, intervém de maneira convincente, serenando os ânimos. Mesmo que nos manietem, mesmo que sob certos aspectos façamos a vontade do sistema, é imprescindível a nossa assistência aos perseguidos e torturados que nos confiam as suas defesas. Não é hora de retórica, de confundir bravata com bravura: quanto maiores as iniquidades, mais necessária é a resistência dos advogados.
Saio da cantina certo de que os beleguins – agentes da polícia política – infiltrados entre os bacharéis, candidatos a juristas do estado antijurídico, nos substituiriam nas tribunas. Os manifestos seriam esvaziados pelos interesses que orientam a política internacional e, internamente, a censura sufocaria qualquer repercussão. Tal como ocorreu quando da supressão do habeas corpus, teremos que enfrentar as limitações ao exercício da defesa com o talento ou com o espírito de luta.
Augusto Sussekind de Moraes Rego será vítima de inominável sequestro, da mesma maneira que os destacados criminalistas Heleno Fragoso e George Tavares.
A professora foragida e os demais acusados são condenados a seis meses de prisão, apesar das falhas gritantes do processo. Ela não pode apelar sem se recolher ao cárcere. Novo mandado de prisão é expedido.
A professora, afinal, foi presa? Sim. Mas não pelo caso dos panfletos de Madureira. No início do ano seguinte, ano da Copa do Mundo de Futebol, ano dos gritos de gol, ela vai padecer sob os mais brutais, sofisticados e sádicos métodos de tortura. Vai gritar de dor e de pavor, capturada pelo sinistro DOI-CODI. Será uma prisão decorrente do IPM instaurado para apurar as atividades do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
O advogado incumbido de representá-la no novo processo, exatamente o nosso ponderado homem de cabelos brancos, requer a sua apresentação à Marinha, a fim de que tome ciência da sentença condenatória, nos termos da lei.
A requisição judicial abala a certeza de impunidade do onipresente e onisciente DOI-CODI, obrigado a apresentá-la em cadeira de rodas. Serão interrompidas, dessa maneira, as terríveis sessões de eletrochoques e violências sexuais, e a paralisia e a amnésia parcial escancaradas à Justiça Militar.
A partir de 1970, ano em que as ruas festejam o título mundial, testemunhamos a euforia do “Brasil grande”, do “Ninguém segura esse País” e o aprimoramento das sádicas torturas contra presos indefesos. São impressionantes os relatos, ouvidos pelos advogados, sobre as torturas impostas a prisioneiros e que se respaldariam, leitor, na imprescindibilidade de rápidas informações reclamadas pela “guerra interna”.
A tortura aplicada a grupos aniquilados e as perversões centradas nos órgãos genitais desmentem, por si sós, o vil e cínico argumento.
Antonio Carlos da Gama Barandier é Advogado Criminalista, Professor de Direito Processual Penal, Membro da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros, Autor de várias obras e artigos publicados, entre os quais “Relatos – Um advogado na ditadura”.
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