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Advogados

Alcyone Barretto

13 de dezembro de 2022

Primo torturado

Em 1964, quando militares destruíram o Estado Democrático de Direito, rasgando a Constituição, afastando da Presidência da República o Dr. João Goulart, eu era advogado de Sargentos que participaram da cognominada “Revolta dos Sargentos de Brasília” e da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Membros do CENIMAR invadiram meu escritório, levaram pastas e documentos, desrespeitaram a inviolabilidade dos arquivos dos advogados.

Para evitar prisão, fui, como exilado, para o Paraguai e Argentina, permanecendo no exterior por sessenta dias. Voltei para o Brasil quando terminou o IPM instaurado para apurar os fatos referentes ao “Motim dos Marinheiros”. No dia seguinte ao meu retorno, fui para a Auditoria da Marinha a fim de defender meus clientes.

Não esqueço de que, em setembro de 1963, os Sargentos presos em Brasília foram transferidos para o Rio de Janeiro e permaneceram encarcerados em porões de navios de guerra. Um grupo de criminalistas, no qual eu estava inserido, foi ao antigo Ministério da Marinha, com o escopo de obter autorização para contactar com os detidos.

Chegando ao mencionado prédio, foi o grupo levado a uma sala onde se encontravam alguns Almirantes, tendo se iniciado um diálogo entre os presentes. Notei que um dos Almirantes me olhava com insistência e pensei: Lá vem bomba!

O aludido Almirante, se dirigindo a mim, perguntou “Doutor, posso lhe fazer uma pergunta?” Alcyone Barretto Respondi: “Se eu tiver condições de responder, o farei com todo prazer.”

O militar, com pose marcial, lançou a seguinte questão: “Doutor, na Rússia tem advogados?” Respondi: “Não sou expert em assuntos soviéticos, mas li em jornal que lá tem Almirante. Ora, se tem Almirante, também deve ter Advogados.”

Os presentes ficaram com as bochechas repletas de ar, para conter a vontade de rir.

Várias ocorrências, no exercício da advocacia, estão gravadas na minha memória, como a defesa que fiz de jovens estudantes que moravam num apartamento em Copacabana e tiveram um namorico com moças de Belo Horizonte.

O namoro determinou a prisão dos jovens, pois as moças foram detidas e levadas para Belo Horizonte sob a acusação da prática de crimes definidos na Lei de Segurança Nacional.

Os rapazes foram denunciados em uma das Auditorias da Justiça Militar e eu os defendi. No dia do julgamento, argumentei que era por demais importante a absolvição, para garantir o direito de paquera e de namoro, pois, se fossem condenados, haveria uma decisão que importaria na obrigatoriedade de, quando uma mulher flertasse com um homem, este pedir a ela que apresentasse um Atestado Ideológico e, por isso, a absolvição era uma garantia para todos os homens que estavam na sala de julgamento. Os jovens, por unanimidade, foram absolvidos.

Na década de 70, recebi um telefonema me comunicando que o Dr. IRUM SANTANA estava preso na PE do Exército. No dia seguinte ao telefonema, tinha que estar em São Paulo, para participar do julgamento de pessoas acusadas de pertencer ao Partido Comunista do Brasil. E, assim, não poderia visitar o meu primo Irum.

O julgamento acima mencionado não se realizou, pelo que retornei ao Rio de Janeiro. O Dr. Augusto Sussekind de Moras Rego, emérito e corajoso advogado, em razão da minha ausência, foi visitar meu primo e noticiou-me que Irum havia sido muito torturado e estava num deplorável estado de saúde.

Com o Augusto, fui visitar o meu querido primo Irum e, lá na prisão, verifiquei que o mesmo estava transformado, em razão dos maus tratos, em um trapo humano. Conversei com o Irum e depois me retirei.

Fui andando no pátio da PE do Exército e estava completamente abalado, com vontade de chorar. O saudoso Augusto Sussekind colocou sua mão em meu ombro e afirmou: “homem chora.” Aí comecei a chorar copiosamente, era uma crise emocional, meu choro não era de pena do primo, mas era um choro de revolta, um choro de indignação, um choro por verificar o que faziam reacionários militares com aqueles que sonhavam com um mundo de paz, de terra, pão e liberdade.

Alcyone Barreto foi Advogado Criminalista, Presidente da Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e Baluarte da Estação Primeira de Mangueira. Faleceu em agosto de 2013.

Reprodução/Livro: ” Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo “, Iniciativa: OAB e OABSP, Organização: José Mentor, Março, 2014.



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