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Advogados

Airton Soares

13 de dezembro de 2022

Advocacia de risco

A advocacia que se permitiu exercer perante a Justiça Militar na defesa de dissidentes políticos que enfrentaram combatendo militares que tomaram o poder pela força das armas, instituindo no Brasil uma ditadura militar, não encontra parâmetros de comparação com a advocacia que se exerce num estado democrático de Direito.

Sempre entendemos que o dissidente político perseguido e preso era cliente especial e diferenciado, que deveria receber dos advogados não só defesa no processo, mas, também, solidariedade pessoal e política irrestritas com total respeito à suas convicções políticas e ideológicas.

Não seria possível exercer a defesa dos direitos dos clientes exclusivamente dentro das regras estabelecidas em Lei para o exercício da profissão de advogado. Para defender dissidentes políticos num regime ditatorial o advogado era obrigado a extrapolar os limites legais nos tribunais militares, pois a advocacia nesses tribunais de exceção estava inserida na luta pelo restabelecimento do estado de direito, dever de todo advogado.

A violência dos militares contra as instituições democráticas, com a supressão dos direitos e garantias individuais dos cidadãos, permitiu que, com base numa Lei de Segurança Nacional elaborada nos porões jurídico-militares da ditadura, pudessem ser presos todos aqueles que contra ela se manifestassem, como se fossem inimigos da pátria.

Os militares, para se manterem no poder, reprimiam não só o dissidente político perseguido, mas também todo o segmento social em que ele estivesse inserido, intimidando a sociedade como um todo. Eram orientados e treinados por agentes da CIA subordinados aos princípios da “Guerra Fria”.

Toda ação de investigação e busca era clandestina. Nas auditorias militares não eram encontrados registros. Tudo acontecia dentro da mais absoluta e criminosa clandestinidade, sob o controle de autoridades militares vinculadas ao Exército, Marinha e Aeronáutica, que instituíram um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) com seus Destacamentos de Operações e Informações (DOI) em cada região militar do país, que, além de seus efetivos próprios, recrutava oficiais e soldados das Polícias Militares, agentes e delegados da Polícia Civil, para agirem sob seu comando. Seus integrantes, além de receberem seus salários regulares, tinham um complemento salarial pago por grandes empresas nacionais e internacionais.

Nesse contexto o advogado já era chamado para intervir. Antes mesmo da existência de qualquer processo conhecido, o advogado era procurado para a defesa do perseguido político e de todos os que com ele se relacionavam. Todos eram ameaçados por uma repressão sem rosto e identidade, composta de agentes policiais, militares e paramilitares, que, partindo de quartéis e sítios clandestinos, fortemente armados, utilizando viaturas sem identificação, prendiam suspeitos e os levavam para esses locais desconhecidos.

Tendo conhecimento de prisão nestas circunstâncias, restava ao advogado dar apoio à família do preso e, através de petição, dar ciência ao Juiz Auditor Militar da ocorrência de uma prisão ilegal realizada por militares de sua circunscrição judiciária, com pedido de informações sobre o paradeiro do preso e a quebra de sua incomunicabilidade. Era o que podia ser feito pelo advogado e que, de certa forma, comprometia o juiz com a segurança física do preso. Era o “habeas corpus” possível.

Embora a resposta do Juiz Auditor Militar fosse sempre a de que a representação não tinha amparo legal, na prática a comunicação formal da prisão passava a ser um instrumento que fazia com que os militares se contivessem nos seus impulsos assassinos, preservando a vida do preso.

As investigações realizadas pelo DOI-CODI não obedeciam a prazos e nem estavam sujeitas a fiscalização. Eram totalmente consentidas pelas autoridades em geral e especialmente por juízes e ministros da Justiça Militar, que também sabiam que era nesse período de incomunicabilidade do preso que contra ele eram cometidas toda sorte de violência física e moral, em alguns casos submetendo-o diária e consecutivamente à tortura, com o requinte de dispor de oficiais médicos para avaliar o estado de saúde do preso, para que continuasse a ser torturado. Muitos morreram nessas prisões e boa parte dos mortos não foi entregue para suas famílias.

Depois que do preso eram extorquidas todas as informações e autoincriminações no DOI-CODI, o preso era conduzido para a Polícia Civil. No Departamento de Ordem Política e Social da Polícia Civil do Estado ,“DEOPS”, os delegados que conviviam, permitiam e também torturavam, eram os escolhidos pelos militares e incumbidos de dar legalidade às investigações por eles realizadas. Então, o preso político prestava novo depoimento em papel oficial e timbrado, perante um delegado de polícia, escrivão e testemunhas “arranjadas”. O delegado exigia que o preso confirmasse suas declarações obtidas no DOI-CODI, sob ameaça de que, caso não confirmadas, seria ele enviado de volta para o DOI-CODI, onde seria torturado até concordar em assinar o inquérito do DEOPS.

Até então o preso permanecia incomunicável, sem ter acesso a advogado e à família.

Finalmente, o inquérito “legal” era encaminhado para a auditoria militar para processo e julgamento. Era a face pública da repressão política da ditadura. Um juiz auditor recebia o inquérito, dava vistas para a denúncia ao Ministério Público Militar e, após recebida a denúncia, era marcado o interrogatório do preso político réu. Esse era o momento em que, na quase totalidade dos casos, se dava a quebra da incomunicabilidade do preso político. Testemunhas eram ouvidas e provas apresentadas. Depois vinham as alegações finais da acusação e defesa, permitida a sustentação oral. Ao final, os juízes militares (maioria) e o juiz togado se reuniam secretamente e apregoavam a sentença, dela cabendo recurso ao Superior Tribunal Militar.

Essas audiências de instrução e julgamento constituíam cenas de uma verdadeira peça de teatro, onde, com exceção do réu preso e seu advogado, todos representavam. As sentenças, com exceções no caso de pouco envolvimento do acusado, vinham prédeterminadas pelos militares responsáveis do DOICODI e o Juiz Auditor se incumbia de dar a elas forma jurídica e fundamentos legais, restando aos militares do Conselho de Sentença ratificá-las. Raramente o Superior Tribunal Militar, ao julgar o recurso da defesa, modificava as decisões prolatadas na Auditoria Militar.

A presença de advogados de defesa nesse cenário criava dificuldades para o funcionamento do tribunal militar de exceção. A partir da denúncia da excepcionalidade da Lei de Segurança Nacional, que era aplicada, o advogado procurava demonstrar que as auto-incriminações dos interrogatórios tinham sido obtidas mediante tortura, que não eram válidos depoimentos de co-réus como prova, que provas periciais nunca foram permitidas, e muito menos exames de corpo de delito que pudessem comprovar as torturas praticadas, enfim, demonstravam que não era assegurado o devido processo legal.

Condenado, o preso político continuava a ser assistido por advogado, que acompanhava o cumprimento da pena, pois mesmo depois de condenado, o preso político continuava ameaçado pelos agentes do DOI-CODI, que o retiravam da prisão para novos interrogatórios quando bem entendessem, em nome de qualquer outra investigação em andamento. A entrevista regular do advogado com seu cliente preso dava a ele mais segurança e garantia dentro das prisões.

Nessas entrevistas, alguns advogados se dispunham a levar e trazer, clandestinamente, mensagens entre o preso e seus companheiros que estavam em liberdade, correndo riscos, principalmente nos casos em que a informação transmitida era um alerta de que os militares sabiam do local marcado para determinado encontro que ocorreria entre seus companheiros e estavam orientados a não prendê-los vivos, ou seja, que estavam marcados para morrer. Quando o alerta chegava em tempo, vidas eram salvas.

Quando decidi advogar na Justiça Militar, tinha plena convicção de que estava restringindo o campo para o exercício da minha profissão e fechando as portas para a advocacia em outras áreas do direito, enquanto durasse o regime militar. Senti na pele que advogar para presos políticos intimidava novos clientes e afugentava clientes antigos. E essa advocacia ficou mais difícil quando a ditadura militar passou a espalhar cartazes por todo país, com fotos de dissidentes políticos, identificando-os como terroristas, visando confundir a opinião pública, para dificultar adesões à luta contra a ditadura.

Em decorrência, militares repressores, apoiadores da ditadura e alguns órgãos de imprensa passaram a utilizar a expressão “advogado de terroristas”, quando mencionavam os advogados de presos políticos.

Mais difícil ainda se tornou o exercício da profissão quando militares prenderam advogados de presos políticos. Nossos escritórios foram invadidos por agentes do DOI-CODI, à paisana e fortemente armados, que, sem exibir qualquer espécie de ordem de prisão, nos levaram numa viatura sem identificação à sede do DOI-CODI em SP. Lá fomos trancados numa cela à prova de som e sem janelas. Depois de muito tempo presos nessas condições, fomos submetidos a interrogatório e lá ficamos até que, diante da repercussão negativa nacional e internacional das prisões, ordens militares superiores determinaram que fôssemos libertados.

A prisão dos advogados no pleno exercício da profissão tinha como objetivo nos intimidar, para que deixássemos de denunciar os tribunais militares, como verdadeiros tribunais de exceção, e as torturas e assassinatos praticados pelos militares nos porões de suas prisões. Éramos advogados lutando pelo restabelecimento do Estado de Direito em nosso país.

Nessa oportunidade, pela primeira vez a ORDEM DOS ADVOGADOS – Secção de São Paulo, aprovou a realização de um ato público de desagravo aos advogados presos por militares. Foi o primeiro confronto direto e público da OAB com autoridades militares no país, depois de longo período de convivência. A partir de então a Ordem dos Advogados passou a adotar posturas mais rígidas contra o regime militar, transformando-se num dos pilares da redemocratização.

Os advogados de presos políticos contribuíram decisivamente para que a imagem e a propaganda de que na Justiça Militar eram processados os adversários políticos da ditadura, respeitando o devido processo legal, fosse desmascarada, nacional e internacionalmente.

Aos poucos foi ficando claro que valia a pena advogar nos tribunais militares de exceção, na defesa de cidadãos que se opunham de todas as formas à ditadura militar, mesmo com todas as restrições ao exercício do direito de defesa, ficando demonstrado que estávamos lutando ao lado de democratas brasileiros para por fim ao regime militar e pelo consequente restabelecimento do estado de direito.

Airton Soares é Advogado Criminalista, formado pela Faculdade de Direito da USP, com curso na Universidade de Harvard/Seminário sobre Desenvolvimento Econômico da America Latina e Sociedade Americana (1967/1969), ex-Deputado Federal por São Paulo (1975/1987).

(Reprodução/Coragem – A Advocacia Criminal nos Anos de Chumbo/OAB São Paulo)



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