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Em segundo julgamento, único militante sobrevivente de operação que matou Lamarca tem pena aumentada pelo STM

19 de janeiro de 2023

Apelação 39.824 (RJ)

Após anulação de sua sentença pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o único militante sobrevivente da operação militar que matou o líder oposicionista Carlos Lamarca, Olderico Campos Barreto, do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), teve sua pena aumentada pelo Superior Tribunal Militar (STM) de 3 para 5 anos de reclusão em um segundo julgamento.

Olderico foi condenado em 1971 pelo delito de tentativa de reorganização de partido político ou associação proibida por lei, estabelecido pelo artigo 43 do Decreto-Lei 898/1969. A sentença, mantida pelo STM, foi anulada. Em novo julgamento, a corte militar reexaminou as acusações, considerou-as mais graves e aumentou sua pena para 5 anos de prisão, pelo crime de “praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva”, previsto no artigo 25 da norma.

O Ministério Público Militar (MPM) acusou Olderico Campos Barreto, em 22 de novembro de 1971, dos crimes de praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva e de “exercer violência, por motivo de facciosismo ou inconformismo político-social, contra quem exerça autoridade”, estabelecido no artigo 33 da Decreto-Lei 898/1969. A pena do primeiro delito era de 5 a 15 anos de reclusão, e a do segundo, de prisão perpétua. O MPM também pediu a prisão preventiva do acusado.

Segundo o MPM, Olderico teve destacada atuação como elemento de ligação entre praticantes da guerrilha rural do MR-8, implantada numa fazenda de sua família na região de Buriti Cristalino, a 18 quilômetros da cidade de Brotas de Macaúbas (BA). De acordo com a procuradoria, ele conduziu o “terrorista” José Lopes Salgado, o qual determinara o deslocamento de Carlos Lamarca para a Bahia. O MPM afirmou, também, que Olderico disparou, com revólver calibre 38, contra os agentes encarregados da operação que descobriu o paradeiro deles.

A ação ocorreu durante os meses de agosto e setembro de 1971, após as autoridades militares tomarem conhecimento da presença no local do então líder do MR-8 Carlos Lamarca e de um “aparelho rural”, a ele associado, onde estavam estabelecidos organismos de apoio à guerrilha no interior.

À frente da denominada Operação Pajussara estavam o major Nilton Cerqueira e o delegado Sérgio Paranhos Fleury. A polícia cercou a fazenda Buriti, de propriedade da família de Olderico, no dia 28 de agosto de 1971. De acordo com o MPM, houve tiroteio, iniciado pelos integrantes do MR-8 que se encontravam dentro da casa. As autoridades de segurança revidaram, causando a morte dos militantes Luis Antônio Santa Bárbara e Otoniel Campos Barreto, irmão mais novo de Olderico. Este sofreu ferimentos, sendo detido logo em seguida.

O pai de Olderico e Otoniel, José de Araújo Barreto, que também se encontrava no local, foi interrogado pelos militares. Seu filho mais velho, José Campos Barreto, o Zequinha, e Lamarca conseguiram fugir pelo mato, mas foram encontrados e assassinados alguns dias depois pelos agentes dos Estado. Além disso, um oficial também acabou sendo morto durante o confronto.

Condenação, anulação, condenação

O Conselho Permanente de Justiça, órgão da Justiça Militar encarregado de julgar soldados e civis, recebeu a denúncia.  

As testemunhas ouvidas foram militares que tomaram prova da perseguição e civis do povoado de Brotas de Macaúbas. Todos disseram que os irmãos Barreto eram bons rapazes e trabalhadores, mas que sabiam que eles participavam do movimento de esquerda e que Lamarca se encontrava na região. Os militares afirmaram, ainda, que foi Olderico quem primeiro atirou, com um revólver 38. Ele confessou o ato. Porém, disse ter agido por pensar que se tratava de um ataque de ciganos.

Em alegações finais, o MPM restringiu a acusação ao crime de praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva, previsto no artigo 25 do Decreto-Lei 898/1969. Na denúncia, o órgão também havia imputado ao militante o delito de exercer violência, por motivo de facciosismo ou inconformismo político-social, contra quem exerça autoridade, estabelecido pelo artigo 33 da norma.

O Conselho Permanente de Justiça entendeu que os crimes praticados por Olderico não eram os de praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva e de exercer violência, por motivo de facciosismo ou inconformismo político-social, contra quem exerça autoridade. Para o colegiado, o militante cometeu o delito de tentativa de reorganização de partido político ou associação proibida por lei, determinado pelo artigo 43 da norma. Este terceiro delito tinha pena inferior aos outros dois – de 2 a 5 anos de reclusão, contra 5 a 15 anos do primeiro e prisão perpétua do segundo. Dessa maneira, o conselho o condenou a 3 anos de prisão. A sentença foi mantida pelo STM.

A defesa de Olderico, comandada pelo advogado Luiz Humberto Agle, pediu a anulação da sentença ao STF. O defensor argumentou que o Conselho Permanente de Justiça desrespeitou regras procedimentais para julgamento de crimes políticos ao condenar o militante por crime diferente dos que o MPM lhe havia imputado.   

A alínea “a” do artigo 72 do Decreto-Lei 898/1969 estabelecia que o Conselho de Justiça poderia dar ao fato definição jurídica diversa da que constasse na denúncia, ainda que, por isso, tivesse que aplicar pena mais grave. Mas isso desde que aquela definição tivesse sido formulada pelo Ministério Público, em alegações escritas, e a defesa tivesse tido a oportunidade de examiná-la.

Já a alínea “b” do mesmo dispositivo permitia ao Conselho de Justiça proferir sentença condenatória por fato articulado na denúncia mesmo que o Ministério Público houvesse opinado pela absolvição. Além disso, autorizava o colegiado a reconhecer circunstância agravante não arguida pela acusação, mas referida, na narração do fato criminoso, na denúncia.

O STF aceitou o recurso e anulou o processo. A corte entendeu que o Conselho de Justiça desrespeitou a alínea “a” com o pretexto de aplicar a regra da alínea “b” do artigo 72 do Decreto-Lei 898/1969. A ementa do acórdão, relatado pelo ministro José Geraldo Rodrigues de Alckmin, tem a seguinte redação:

“No processo por crime contra a segurança nacional, não pode o Conselho de Justiça dar aos fatos nova definição jurídica, se esta não houver sido previamente formulada pelo Ministério Público, por escrito e em oportunidade que não surpreenda a defesa. A regra da letra ‘a’ do artigo 72 do Decreto-Lei 898/1969 não pode ser desatendida a pretexto de aplicação da regra da letra ‘b’ do mesmo dispositivo legal. Anulação do processo a partir da sentença que operou, indevidamente, a desclassificação do crime”.

Em novas alegações finais, o MPM voltou à sua tese inicial e pediu a condenação de Olderico pelos crimes dos artigos 25 e 33 do Decreto-Lei 898/1969. Dessa vez, porém, o Conselho Permanente de Justiça absolveu Olderico por não existir prova suficiente para a condenação.

Em sessão secreta do julgamento da apelação, em 5 de abril de 1976, o relator no STM, ministro togado Alcides Carneiro, afirmou que concordou com a desclassificação da acusação para o crime do artigo 43 do Decreto-Lei 898/1969, feita pela primeira sentença, inclusive pelo fato de Olderico ser réu primário. Entretanto, o magistrado deixou claro que discordava da decisão do STF que anulou a condenação.

“Ainda hoje eu entendo que o conselho também pode desclassificar, porque esse negócio de contraditório não é contraditório, a defesa não é surpreendida. Na verdade, nunca é surpreendida a defesa, porque o procurador pode mudar de opinião. A defesa defendeu seu constituinte. O que há é uma confusão entre a Justiça Comum com a denúncia que não está aqui. Daí isso de contraditório porque não querem examinar [as acusações]”, opinou.

Nesse segundo julgamento, contudo, o ministro voltou atrás em sua análise inicial e considerou mais grave a conduta do militante. “É ilícito crer que este rapaz ignorasse que a casa dele era um aparelho subversivo, que o pai e os irmãos fossem partidários do Lamarca, das guerrilhas. Ele que conduziu um mensageiro, o principal até uma ponte”.

Carneiro também disse que “a maior tragédia do terrorismo brasileiro foi um crime praticado pelo pessoal do Lamarca contra um oficial da polícia”. Ele provavelmente está se referindo a um episódio ocorrido em 1970, quando as Forças Armadas cercaram o grupo de Carlos Lamarca em Eldorado Paulista (SP). Após capturar policiais militares, o líder da luta armada firmou um acordo para libertá-los em troca da reabertura da estrada. Ao fugirem, os guerrilheiros mataram um tenente da PM que era feito como refém.

Por outro lado, “a reação da polícia quando matou os terroristas” na Operação Pajussara foi elogiada pelo ministro. “Tinha que fazer, como fez, matou três, e esse [Olderico] foi ferido”.  

Carneiro também disse que que Olderico foi escolhido como acompanhante justamente por ser tido como “inofensivo, culto, viajado, bonzinho” e, por isso, não levantar suspeitas. Por isso, o relator concordou com o MPM que a conduta do militante configurava o crime previsto no artigo 25 (praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva) do Decreto-Lei 898/1969. No entanto, o magistrado entendeu que Olderico não praticou o delito do artigo 33 da norma (exercer violência, por motivo de facciosismo ou inconformismo político-social, contra quem exerça autoridade).

“O artigo 33 é uma consequência, 33 foi a reação à bala, em virtude da guerra revolucionária que estava iniciada ali no interior da Bahia na fazenda Buriti”, avaliou o relator. Até porque a pena pelos dois crimes daria, no mínimo, 13 anos de prisão, o que ele considerou exagerado.  

“Condenar por 13 anos, nem o cabo Anselmo pegou. Eu acho que só os grandes terroristas e tal, esses que foram julgados fora de juiz, Juiz de Fora, tiveram penas assim tão árduas”.

Assim, Alcides Carneiro votou por aceitar em parte a apelação do MPM e condenar o militante a 5 anos de reclusão, além de suspensão de seus direitos políticos por 10 anos.

O ministro togado Waldemar Torres questiona se é possível estipular, na segunda decisão, uma pena mais alta do que a definida na primeira – que era de 3 anos de prisão. Há uma breve discussão entre os magistrados, mas, ao final, prevalece, por unanimidade, o voto do relator.

Violação de direitos humanos

Único militante sobrevivente da Operação Pajussara, Olderico Campos Barreto diz que passou por fortes torturas após ser ferido com um tiro no rosto e na mão, assim como seu pai, José de Araújo Barreto, à época com 64 anos. Além disso, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que Otoniel Campos Barreto e José Campos Barreto, o Zequinha, irmãos de Olderico, foram executados na mesma operação pelos agentes do Estado brasileiro.

Da esquerda para direita: os irmãos Olderico Barreto e Olival Barreto em depoimento à Comissão Nacional da Verdade. Foto: CNV.

Em reportagem de 2014 para a revista Carta Capital, Thaís Barreto, jornalista e filha de Olderico, relatou, com base em depoimentos do pai, que este foi torturado na frente de toda a população do local: “Arrancaram todas as suas unhas enquanto indagavam sobre o paradeiro de Lamarca e Zequinha”. Contou, ainda, que jogaram produtos químicos nos ferimentos e os costuraram sem nenhuma anestesia. Ainda assim, Olderico não entregou nenhuma informação sobre os militantes.

Em seu interrogatório judicial, Olderico contou, em detalhes, como se deu a operação que culminou na morte de seu irmão mais novo, Otoniel. Após este ser detido e espancado, Olderico reagiu e foi atingido por um disparo no rosto. A seguir, foi conduzido, junto a seu pai e o irmão Otoniel, para a frente da casa deles. Despiram Otoniel, colocando suas roupas ao lado, porém não perceberam que havia um revólver em sua calça.

Levaram então o pai, José de Araújo Barreto, para um barracão próximo, o penduraram de cabeça para baixo em uma corda, e, com socos e ameaças de morte, questionaram sobre o paradeiro do terceiro filho, Zequinha, na intenção de chegar até Lamarca. Desesperado pelo sofrimento do pai, Otoniel alcançou a arma, atirou e foi em direção ao barracão. Nessa hora, foi atingido pelos agentes militares, morrendo no próprio local. 

Testemunhas, incluindo o soldado e morador do município Reul Pereira Silva, que atuava na operação, confirmaram que Otoniel já estava detido antes de morrer.

O laudo necroscópico é impreciso, mas permite concluir que Otoniel levou um tiro na cabeça, de frente, além de outros pelas costas. Foi alvejado, ainda, no ombro direito, de cima para baixo, o que indica que estaria deitado nesse momento, caracterizando execução.

O relator do caso de Otoniel na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, Luís Franciso Carvalho Filho, afirmou que o mais provável é que o militante tenha sido atingido primeiro nas costas – o laudo regista dois tiros disparados pelas costas. Questionou, ainda, sobre os tiros na cabeça, pela frente, e no ombro, de cima para baixo: “Execução?”.

Concluiu seu voto dizendo que a intenção era matar, e não deter – a finalidade que seria legítima de qualquer operação militar –, já que todos os tiros foram direcionados para o tronco e cabeça. O próprio relatório da Operação Pajussara registra a intenção de “capturar ou destruir”.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Olderico relatou que, após morto, Otoniel foi deixado no mesmo lugar, veio um carcará e comeu os olhos dele.

Carlos Lamarca e outro irmão de Olderico, Zequinha, que haviam conseguido fugir do cerco da operação, foram mortos pelas autoridades militares no dia 17 de setembro de 1971, no povoado de Pintada, pertencente ao município de Ipupiara (perto do limite com o município de Brotas de Macaúbas).

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu que Otoniel Campos Barreto e Zequinha foram executados por agentes do Estado brasileiro. Com base nisso, recomendou a retificação de suas certidões de óbito, a continuidade das investigações sobre o paradeiro de seus restos mortais e a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos no caso.

No caso de Lamarca, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça concedeu a ele, em 2007, a patente de coronel do Exército, o status de perseguidos políticos à sua primeira esposa, Maria Pavan Lamarca, e a seus dois filhos, além do direito a pensão e indenização a estes dois últimos.

Integrantes das Forças Armadas não aceitaram a anistia e, por meio de clubes militares, passaram a questioná-la na Justiça. Em abril de 2022, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) manteve suspenso o pagamento de indenizações e reparações financeiras à família do guerrilheiro.

História dos irmãos Barreto

Olderico Campos Barreto, irmão do meio, nasceu em Brotas de Macaúbas, a 600 quilômetros de Salvador. Militou no MR-8, até ser preso no dia 28 de agosto de 1971, aos 23 anos de idade, na Operação Pajussara. Olderico saiu da prisão somente em 1979, com a Lei da Anistia (Lei 6.683/1979), e pouco depois voltou para sua terra natal. Anos depois, dedicou-se à missão de preservar a espécie nativa do semiárido nordestino.

Mais novo, Otoniel Campos Barreto nasceu e viveu a vida inteira em Brotas de Macaúbas (BA), ao lado dos pais. Era camponês e ajudava o pai, José de Araújo Barreto, na lavoura e no comércio. Militou no MR-8, até ser executado, aos 20 anos de idade, pelos agentes do Estado brasileiro, na mesma operação e dia em que Olderico foi preso.  

O mais velho dos três, José Campos Barreto, também conhecido como Zequinha, era operário e metalúrgico sindicalista. Esteve à frente da greve da Cobrasma, em São Paulo, em 1968, sendo torturado pelo Dops por isso. A partir de então passou a viver na clandestinidade. Foi quando seu caminho cruzou com o de Carlos Lamarca, entrando para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e, posteriormente, o MR-8. Foi morto, aos 24 anos de idade, junto com Lamarca, em 17 de setembro de 1971, pelas autoridades militares, na Operação Pajussara.

Apelação 39.824 (RJ)



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